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Publicado na Quarta, 29 de julho de 2015, 10h33
A dívida fantasma de R$ 97,3 bilhões que dá pesadelos em milhares de brasileiros

Por Marcelo Beserra*

Para milhares de brasileiros as palavras desapropriação e precatórios são daquelas que provocam pesadelos. E com razão, pois a decretação de uma desapropriação traz sempre angústias, expectativas e frustrações, sem contar a exigência de uma paciência monástica.

Embora a Constituição Federal de 1988 veio corrigir um grave problema com o instituto das desapropriações, que, antes da nova ordem democrática de direito, a legislação anterior não tinha a força necessária capaz de compelir o poder público a pagar, pelo menos parte considerável da indenização antes da entrega da posse do imóvel desapropriado aos entes expropriantes.

Antes da atual Constituição, era comum ver proprietários serem desapropriados e obrigados a entregar seus imóveis por valores pífios, submeterem-se às incertezas dos precatórios, que levavam décadas para serem pagos.

É verdade que, com a Constituição de 1988, esse quadro melhorou para os proprietários, pois foi inserido dispositivo no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais, o princípio de que os pagamentos das indenizações em desapropriação devem ser prévios e em dinheiro. Assim, os Juízes, nos inícios dos processos judiciais, passaram a determinar aos peritos judiciais de suas confianças a realização de avaliações provisórias, para condicionar a entrega da posse ao depósito judicial dos valores apurados. E, com base na antiga Lei de Desapropriação, que é de 1941, da Ditadura do estado Novo na era Vargas, os juízes passaram à interpretá-la e adaptá-la à vontade da nova constituição, de modo que passaram a liberar 80% dos depósitos judiciais, para os proprietários desapropriados no momento em que esses fossem obrigados a entregar seus bens ao patrimônio público.

Na maioria das vezes, os 80% recebidos no início do processo, não é o suficiente para o proprietário recompor seu patrimônio, com a aquisição de imóvel semelhante na mesma região. Pelo contrário, em muitos casos, embora recebam das avaliações judiciais provisórias, esses 80%, são empurrados a comprarem em locais menos valorizados.

Somente no final do processo, após o julgamento de segunda instância, alguns anos após, o proprietário receberá os 20% restantes, sendo que esse valor decorrente de depósito judicial nos bancos oficiais é atualizado pelos índices das cadernetas de poupança, que sabemos é muito inferior à valorização do mercado imobiliário. Consequentemente, vemos que não é incomum o empobrecimento dos proprietários decorrente da redução de seus patrimônios.

O drama das desapropriações aumenta quando o proprietário tem saldo a recebe, nos casos em que as avaliações definitivas acolhidas pela Justiça são maiores que as avaliações provisórias, em que os entes expropriantes são administração direta e autarquias, que faz surgir a figura temida do precatório.

Precatórios são dividas oriundas de sentenças judiciais contra a fazenda pública e autarquias, uma criação genuinamente brasileira, assim como a jabuticaba. E, diferentemente do saboroso fruto brasileiro, ele tem sabor de amargo de fel, um “cálice de vinho tinto de sangue” diante das incertezas que ele vem apresentando ao longo da história jurisdicional pelos calotes, acúmulos de dívidas e sucessivas moratórias constitucionais, isto porque os governos estaduais e municipais deixaram acumular as dívidas a dezenas de bilhões de reais.

Na Constituição de 1988, houve um parcelamento das dívidas dos precatórios em 08 parcelas anuais. Muitos entes públicos não cumpriam suas obrigações, o que fez o Congresso Nacional, em setembro de 2000, a editar a Emenda Constitucional nº 30, que criou mais uma moratória, com o parcelamento em 10 parcelas anuais. Da mesma forma, muitos entes públicos, estados e municípios, não cumpriram essa nova moratória, o que fez o Congresso, em dezembro de 2009, a editar a Emenda Constitucional nº 62. Como se vê, não se pode falar em moratórias para os credores externos, mas aqui, o Governo adorou a se valer desse meio para seus credores de títulos judiciais.

Por essa última emenda, foi criado um regime especial de pagamento, e passando a obrigação de o Poder Público, Estados e Municípios, destinarem 1,5 % a 2% das suas receitas correntes líquidas em conta judicial vinculada à Presidência dos Tribunais de Justiça dos Estados, a fim de que os precatórios fossem pagos de acordo com suas listas de prioridades e ordem cronológicas.

Felizmente, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, juntamente com outras entidades, entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 4357), que, em 2013 julgou inconstitucional essa nova moratória constitucional, além do que fulminou o critério de correção dos precatórios pelas cadernetas de poupança em decorrência de da Lei 11960/2009. Mas essa decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2013, necessitava ser modulada, ou seja, saber os efeitos do pretérito de sua vigência até a decisão do Supremo, sobre os pagamentos e saldos de precatórios existentes. E, somente, agora, neste ano de 2015, a modulação foi julgada e publicada.

E o curioso dessa modulação é que ainda foi dado um prazo de 05 anos a partir de 1º de janeiro de 2106, e convalidando, não obstante a declaração de inconstitucionalidade da Lei 11960/09, a correção pelos índices da caderneta de poupança de dezembro de 2009 até a publicação da modulação neste ano de 2015. E isso, entendemos, que não poderia ocorrer em respeito à coisa julgada, como aliás, o próprio STF assinalou em sua decisão.

De tudo exposto, vemos que é uma verdadeira epopeia, uma via crucis a que são submetidos os credores do poder público que foram desapropriados. Vemos, nas prateleiras do Poder Judiciário, que precatórios ainda da décadas de 1970 e 1980 ainda se encontram pendentes de pagamentos, fazendo com que milhares de credores faleceram antes de receberem seus créditos. E, pelo visto, muitos herdeiros morrerão antes de ver satisfeitos os pagamentos dos precatórios herdados por seus pais, que para nós implica verdadeira violação aos direitos humanos e negativa da vigência do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

E o pior é que, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal ter dado um basta nas moratórias, há o rumor de que governadores e prefeitos preparam uma Nova Emenda Constitucional para tentar alterar a forma e prazo de pagamento sacramentada pela última de cisão do Supremo Tribunal Federal, o que está a gerar mais medo e incertezas, porque, se tratando de dívida pública no Brasil, tudo é possível.

Melhor seria se os Governantes, em vez de criarem moratórias, buscassem alternativas criativas para quitação dos precatórios, sendo que não faltam propostas como a OAB e outras entidades já fizeram. Mas, pelo jeito, não há vontade política.

Mas, justiça seja feita, muitos Estados têm admitido em suas legislações a compensação dos créditos de precatórios com impostos estaduais devidos, o que gera um mercado e que propicia aos credores cederem seus créditos aos interessados. E a mais criativa de todas é a do Rio de Janeiro, que passou a usar parte dos depósitos judiais nos casos de Execuções Fiscais em discussões, para pagamento dos precatórios, o que permitiu um grande avanço na ordem dos pagamentos diminuindo, em muito seu saldo devedor.

Os precatórios, por serem títulos judiciais de dívida do poder público poderiam ser comercializados em bolsa, compor fundos de infraestrutura e imobiliário para habitação popular, etc. Como dito, boas ideias não faltam, haja vista os bilhões de reais que os Estados e Municípios poderiam, além de fazer justiça com o pagamento aos seus credores, irrigar a economia, contribuindo, assim, para o progresso do país e ajudar a destravar o gargalo da infraestrutura.

Enquanto essa letargia do poder público na busca de uma solução justa para o problema, os vitimados pelas desapropriações e precatórios continuam na espera de ter um final feliz desse longo pesadelo provocado pelo descaso e incompetência dos nossos governantes.

 * Marcelo Beserra, advogado, especialista em direito público e civil, pós graduado pela Fundação Getúlio Vargas, autor do livro "Desapropriação no Direito Brasileiro", editora Forense, 2001, membro efetivo da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP, sócio da Advocacia José Yunes e do IASP.